
Ela estava sentada, absorta, ausente, a ouvir tudo sem interpretar nada, a cabeça a rodopiar entre os doces, os frutos secos, as gargalhadas dos sobrinhos, o crepitar do fogo que aquecia a casa congelada nas janelas. Tudo aquilo em que acreditava estava longe, num sítio chamado distância, sem tempo ou espaço, sem crenças ou verdades. Só lhe restava esperança, as badaladas de um relógio interior, as doze passas de disciplina para agir e mudar a sua vida.
Cinco minutos para a meia noite. Todos se levantaram, o rebuliço para organizar mais uma viragem de ano, taças de champanhe a postos, as crianças com tachos e panelas prontas a fazerem o barulho infernal do costume, as tias, avós, primos a contarem e distribuirem as passas de mão em mão. A alegria, a família, o tempo, a mudança.
Tudo lhe parecia tão perfeito, tão seu, que por momentos perdeu a coragem de desejar mais do mundo.
Olhou com ternura o cão aninhado na lareira, imaginando os seus desejos, as suas resoluções de ano novo: que mais poderia ele querer se ela já lhe dava tudo o que podia? Pousou a taça, foi aninhar-se junto a ele, e podia jurar que nos seus olhos brilhantes de bicho que nada sabe do mundo, estava a certeza de toda aquela noite: 'Este será o teu ano'.
- Anda lá, faltam um minuto para a meia-noite, olha a tua taça!- berrou-lhe a mãe.
Levantou-se, foi para junto dos 'seus', e com o rebentar das horas, engoliu o mundo, embrulhado em passas e champanhe, engoliu a vida mergulhada nos olhos daquele animal que lhe ensinara com o olhar a sorver a vida num único trago.
Tudo aquilo em que acreditava, tudo aquilo que desejava.. Estava longe, não era seu, e ela tampouco sabia como conseguir que fosse seu, após tantas tentativas falhadas, tantas hesitações fora de tempo...
Naquela taça de champanhe estava a chave de ouro: tudo estava tão longe quanto o olhar do cão para os que não conseguiam compreendê-lo.
No fundo, era tudo uma questão de distâncias, de tempos, espaços... E de vida.
>Mariana Silva