sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Sem pressa para as palavras...



Ontem vi um poeta.
Podem achar estranho escrever sobre alguém que apenas vimos, e não conhecemos, mas quantas vezes também acontece conhecermos alguém sem o vermos realmente?
Pois entrei eu num café, perdida nos meus pensamentos que, ainda que muitos, ultimamente não têm andado muito profundos - falta de paciência para os desenvolver, creio eu; sentei-me numa mesa ao canto, mais aconchegada, que o frio já enregela os ossos e os problemas, tornando-os mais firmes e insuportáveis, quando deparei com um poeta ao meu lado.
Um poeta, austeramente simpático, chapéu negro, escondendo o cabelo ou a falta dele, óculos grandes, vibrantes, fixados na página, o tempo marcado nas mãos que bailavam com mestria no salão de papel, rugas vincadas nos anos das palavras. Era, deveras, um poeta.
Vê-lo ali, a viver para as folhas em sua frente, fez-me pensar na verdadeira entrega a que a vida nos obriga, ao compromisso diário que, ainda que inconscientemente, temos para connosco e para com outros que nos fazem ser nós. Vê-lo ali fez-me pensar, pretensiosamente, como estarei eu, daqui aos muitos-poucos-muitos anos que a vida me reserva: se estarei eu a viver das folhas e da tinta, se estarei eu ainda a respirar este mais-menos-mais que nao sei explicar e que é tão meu como eu sou dele...
E o poeta continuava ali, compenetrado nas suas palavras, nos seus versos, na sua escrita, e nem mesmo os burburinhos de café, os arrufos dos empregados, as bandejas que passavam, furtivas, de um lado para o outro, a correria da vida a acontecer... Nem mesmo tudo isso alheio a ele o fazia distrair-se, quanto mais alhear-se!, de si mesmo, das suas palavras, dos seus versos, da sua escrita...

Ontem vi um poeta.
Os que me conhecem pessoalmente poderão estranhar este texto dedicado a 'um poeta' que nunca saberá, sei lá eu!, que este texto foi escrito; ainda mais estranharão se considerarem que estou rodeada de 'poetas', de 'amigos poetas', de 'colegas poetas'.
Mas este era um 'estranho poeta', que após considerar terminada a sua tarefa, se levantou, arrumando os papeizinhos numa capa a transportar debaixo do braço, pagou o seu cafézinho e saiu, a passo lento de quem vive extasiadamente sem pressa para as palavras.
Porque este poeta que eu vi, era, antes de poeta, mestre do tempo, das horas mortas e das agonias desmaiadas, cujos ponteiros paravam sempre à mesma hora, naquele café, para que voasse de si a vida, para o ninho de papel...

Foi ontem, hoje? quando?, que eu vi um poeta...



Mariana Silva

3 comentários:

Anónimo disse...

Arrasaste, Mariana, desta vez arrasaste...
Neste momento esttou apenas um pouco para cá de KO com o teu texto, mas quando recuperar direi mais qq coisa, ok? :)))

Bjs

Paulo

Batata disse...

Agora arrasou comigo! =S
Obrigada mais uma vez :)

MarianaS.

Raul Martins disse...

Estou aqui a ler textos da Mariana... textos, uns atrás dos outros e cada vez mais fico surpreendido com a leveza da escrita, a criatividade, a surpresa, a frescura... Parabéns.

E este está suberbo.

Como não vos descobri há mais tempo! Há Paulo Malheiro... porque não me disseste bem mais cedo?

Bem... força Mariana...