Num mundo cheio de adversidades, mesmo das mais pequenas, uma pessoa tem de ter os seus truques na manga para os fintar, por interesse ou conveniência, ou simplesmente por capricho. Essas artimanhas envolvem também uma grande parte de seriedade, experiência e engenho. Repito, até os mais módicos não devem ser levados com leviandade.
A paragem de metro mais perto de minha casa ainda fica a uns cinco minutos a pé. A subir. Ao fim do dia, a ideia de custosamente subir uma íngreme avenida a andar assusta. De tal modo que eu teria de fazer algo para que não tivesse de repetir o ritual todos os dias. Acontece que o metro, depois de parar no terminal, dar largo tempo para os passageiros abandonarem o veículo e fechar sonoramente as portas, ainda vai subir um bom bocado a avenida, de modo a poder dar depois a volta para seguir no sentido contrário, quando for hora disso e quando outro metro for a subir. É o ciclo, é uma incansável dança de veículos que, fazendo lembrar gigantes cobras amarelo-metálicas, podia quase ser vista como um ritual de entre os bichos, tal é a coordenação.
Ora acontece que eu, que – perdoem-me a imodéstia – consigo aliar uma singular manha a uma colossal preguiça, teria de tirar partido daquela subida pós-viagem do metro, que se aproxima, na sua fase final, muito de minha casa. Ocorre-me o seguinte: finjo que adormeço, deixo toda a gente sair do veículo à vontade, ignoro a mecânica voz da mulher que expressamente me diz que a saída é obrigatória, deixo as portas fecharem, e aí sim posso abrir o olho, esperar que o metro chegue ao seu destino, e aí saio calmamente, sozinho, à porta de casa, sem ter de subir, sem ter de me cansar, já de chave da mão e sorriso de dever cumprido.
Ah!, como me vou lembrar por muito tempo da primeira vez que concretizei este plano. Estava nervoso, confesso. Temi não dar a ideia de sono profundo, porque tremia demasiado as pálpebras, e guiava-me cegamente pelos sinais sonoros, a indicação das paragens, as portas a abrirem-se e a fecharem-se, a conversa rumorosa dos outros passageiros. Tinha finalmente chegado à última paragem e senti o estômago a apertar, não sei bem porquê, provavelmente o que mais me deixou impaciente foi a perspectiva de que, caso aquela artimanha falhasse, lá teria eu de subir toda aquela distância até finalmente me recostar no sofá. As pessoas começaram a sair. Aos poucos, eu ouvia. E mal as portas se fecharam, abri um olho, não vi ninguém; abri o segundo, voltou a não surgir vivalma. Pude finalmente descontrair o diafragma, suspirar de alívio, levantar-me, deambular pelo metro vazio, e pela minha saúde que não dancei lá dentro por acaso. Um metro vazio para quem, como eu, é calcado setenta e duas vezes a caminho da escola, é um sonho tornado realidade. Vi dois rapazes do lado de fora a subir a avenida que, sabendo que este último percurso do veículo não deveria ser frequentado por passageiros, me olharam com deslumbramento. Quem lhes dera estar lá comigo. Na vida esgotante de estudante, esta situação seria como se eles estivessem a subir a Serra da Estrela debaixo de tempestade de neve e eu passasse de carro sem lhes dar boleia. Eu sorri-lhes, orgulhoso do estatuto que obtivera. Era um herói.
Claro que com o tempo esta técnica se vai apurando e se vai descobrindo novos níveis desta arte. Por exemplo, consigo saber o tempo que está a fazer lá fora, de olhos fechados do suposto sono profundo. Se ouvir fechos éclair a subir, ou está frio ou muito braguilhas estavam abertas. Se ouvir guarda-chuvas a abrir ou gente a comentar “chiça!”, é porque chove bem. Considero-me já o Ellery Queen dos invisuais. Poirot, de olhos cerrados, não faria melhor.
Mas há um senão neste meu estratagema: os outros passageiros. Já por várias vezes, algum imbecil lembra-se de me «acordar» antes de sair do metro: «olhe, desculpe, é a última paragem». Irado, consigo simular um sorriso ao mentecapto que arruinou a minha estratégia. Alguns, acredito que por boa vontade; outros são apenas pessoas medíocres que mais nada têm para fazer do que meterem o nariz onde ninguém os chamou. Alguns, até, serão movidos pela inveja, também eles queriam acompanhar-me até onde qualquer humano que não tivesse crachá do metro alguma vez chegara. Ainda por cima, tive o azar de ser o pioneiro deste plano de desviar as contrariedades impostas pelos intocáveis percursos dos transportes, num pais e numa cidade onde só parece ser cidadão quem meter a colher na sopa do vizinho. Então se eu estava a dormir tão bem no meu canto, por que cargas de água me haverão de estar a acordar? Chegarão de consciência pesada a casa se não o fizerem? Chegarão realizados a casa caso o façam? Em Londres, onde a frieza das pessoas corta mais do que a matutina neblina, este plano seria perfeito. Sem qualquer falha, erro de cálculo, qualquer contra a apontar.
Seja como for, este esquema funciona com irrepreensível regularidade. Se alguém está a pensar experimentá-lo, não o faça. Uma pessoa ainda passa. Mas alguém há-de estranhar um metro cheio de gente a ressonar e de pálpebras a tremer.
Diogo Hoffbauer (o regresso)