terça-feira, 25 de março de 2008

Pontualmente Obcecada...!

Foi, simplesmente. Não perguntes como ou quando, nem sequer porquê. Não sei responder a esse tipo de perguntas, fico nervosa e tremem-me os joelhos, como na véspera de um exame, sabes que odeio exames, não sabes? Devias saber pelo menos isso, alguma coisa devias saber sobre mim. Mas não, sei que não sabes, não sabes quem sou e não saberias reconhecer o meu cadáver se te chamassem à Morgue, quando eu morresse. Não, não faço intenções de me matar, foi só um exemplo , não te assustes! Mas que mania das pessoas ficarem escandalizadas quando se fala da morte! Não me vou matar, a sério, até gosto da minha vida, se bem que podia ser melhor.

E sabes o que a tornava melhor? Se tu não ligasses às rapariguitas que usam calções que mostram as nádegas mesmo no mais frio dos invernos – sim eu vejo-te a sorrires-lhes no metro – , se tu não gostasses tanto dessas saídas para sítios que eu não conheço e se tu não fosses tão diferente de mim ao ponto de não notares sequer que eu existo. Mas, a sério, se tu ligasses menos a essas coisas podes ter a certeza de que, num beco sem saída, me irias encontrar, encolhida, com frio – mas não por causa dos calções que mostram as nádegas – à tua espera, à espera desse abraço forte que apaga os monstros e limpa as teias de aranha.

Eu preciso de ti, não entendes? Não se nota que eu passo por ti todos os dias, às oito e quarenta e dois, quando apanhámos o metro para o estádio do Dragão? E eu vejo-te sair na Casa da Música, com a tua pasta de executivo bem sucedido e eu, de roupas descontraídas, sigo para a Baixa, para a minha loja de bugigangas onde ninguém entra e que está prestes a fechar.

E porque é que não me lanças um sorriso, se isso poderia deixar-me mais feliz e alimentar-me a alma durante uma semana? Porque é que ages de forma indiferente e apenas pedes desculpa quando me pisas, e não me convidas para um café, um chá, um jantar, uma saída? Vamos ao cinema, está um filme óptimo em cartaz, um dramalhão, aposto que íamos chorar os dois; mas ok, se não queres podemos ir ver uma comédia, aposto que te ias rir mais do que eu, esse sorriso lindo, dentes perfeitamente brancos, lábios carnudos e rosados, covinhas nas bochechas.... Tens uma pele que deve ser muito sedosa, sim senhor, eu nem trinta anos te dava por causa da pele que está muito bem conservada, mas o teu amigo, sim aquele baixinho e careca que não deve estar com uma mulher há anos, ele deu-te os parabéns no outro dia, fazias trinta e dois, nunca mais me esqueci do dia: vinte de Março. Apeteceu-me fazer-te festinhas e dar-te beijinhos na ponta do nariz, dar-te os parabéns e gritar a toda a gente no metro que vivia em função do teu amor e que só sabia o teu primeiro nome, que não sei porque te amo, nem como ou quando começou, mas não consigo parar, não consigo mesmo, acho que és a minha droga, o meu refúgio.

Por favor não te esqueças mais de mim, experimentei um penteado novo e nem sequer olhaste, pensei até em rapar o cabelo só para te escandalizar, para te fazer reparar em mim! Diz-me que eu sou bonita! Mas que mal é que eu te fiz? Eu sou uma mulher tão interessante, até me dizem que é uma pena eu estar sozinha!
Vá, anda aconchegar-te comigo frente à lareira que tenho na sala, sou especialista a fazer pipocas e tenho uma invejável colecção de DVD’s! Qualquer coisa, mas anda, por favor, não aguento mais passar os dias a personificar-te no meu gato! O pobre do bicho já me foge e o pêlo dele em nada se parece com a tua pele... Vá, não me deixes verter nem mais uma lágrima, sei que és tu que vais livrar a minha vida do abismo e a minha alma da fogueira, sei que és aquele por quem tenho esperado...

Vá, não te atrases mais, tens de chegar! Olha que vais perder o metro, não vês que já são oito e quarenta e dois? Onde é que te meteste, porque é que não estás aqui hoje, para onde foste? Nem sequer vejo o teu amigo baixinho, para onde foram os dois? Não me digas que és gay? Mas que desperdício! Ai não, o teu amigo vem aí, conseguiu entrar no metro! Mas onde é que tu estás? Ele vem vestido de preto, não me digas que morreste? Bestial e agora o que é que eu faço? Óptimo mesmo, vou perder o dia todo a prestar depoimentos, a identificar o teu cadáver e a explicar às pessoas que a minha vida acabou porque tu desapareceste e eu não sei como, quando ou porquê, mas comecei a amar-te e não consigo parar!

Ah, afinal já vens aí, mas olha, agora lixas-te e apanhas o próximo metro porque neste já não entras, provavelmente vais chegar atrasado e vais ouvir do patrão... Que falta de pontualidade, valha-me Deus, fica uma pessoa assim toda preocupada e vens tu todo descontraído...



>>> Mariana Silva
[Abril 2006]

domingo, 23 de março de 2008

Chocolate Ultra-Congelado, no sítio do costume


Devo confessar que a minha visão da Páscoa é aquela que a maioria das pessoas tem: férias e doces. Para mim, Páscoa significa poder ficar acordado até tarde e ter na televisão, ao despertar, um reclame do Pingo Doce a umas amêndoas “de grande qualidade”, logo seguidas de uvas sem grainha, e tudo a preços mais convidativos do que os produtos em si. Páscoa é ficar a chupar os dedos depois de encontrar chocolates roubados em qualquer canto da casa da minha avó, é arrumar por detrás das montras os aliciantes do dia dos namorados e lá pôr quaisquer coisas que estejam relacionadas com coelhos, ovos, amêndoas e outras coisas com corantes. A Páscoa é não poder ir comprar leite a um mini mercado sem quase nos sentirmos obrigados a levar connosco um ovo gigante de chocolate da Kinder. É deitar-me no sofá depois de comer – a bem dizer, enfardar – cabrito seguido de leite-creme com amêndoas (estas, sem cobertura), baba de camelo, gelatinas variadas, frutas e um ovo de chocolate para desenjoar.
A Páscoa é, para muita gente, um período de reflexão espiritual. Por isso, decidi também reflectir. Mas parece-me que há uma diferença entre mim e os outros pensadores: eles têm questões e pensam tentando chegar a respostas; eu não tenho questões, começo a pensar e então que, de repente, elas surgem. E o pior é que não chego às respostas.
Por exemplo, uma coisa que me deixa indignado é o facto de um coelho dar ovos. Na minha reflexão, ver um coelho a dar ovos é a mesma coisa que assistir a uma galinha a parir. Estamos perante um fenómeno raro, que acontece uma vez por ano, que é um coelho – ainda por cima macho – a pôr ovos. E um coelho que, pelos anos que já deve ter, já devia ter chegado à menopausa (ou andropausa? A minha confusão aumenta). Mas não há nada de lógico num coelho masculino que põe ovos de chocolate. Só pode ser um mutante ou uma vítima de algum acidente nuclear.
Mas este invulgar acontecimento, o de um coelho a produzir ovos de chocolate, não é caso único em termos de coisas bizarras características da época. Parece que há uns anos – dizem-me fontes seguras – ressuscitou um homem chamado Jesus, que tinha morrido na anterior sexta-feira. Morreu na sexta, ressuscitou no Domingo. É estranho que ainda ninguém tenha avançado com a possibilidade de que Ele possa apenas ter adormecido. Eu pessoalmente já dormi sestas que duraram quase tanto tempo. E nenhum coelho anda a cagar ovos só porque eu dormi tempo demais.
Depois, falta à Páscoa um grande espírito que é injectado em qualquer ser humano que se preze, como acontece no Natal. Um mês antes do Natal, já andam todas as pessoas a desejar “Feliz Natal” umas às outras. Se eu, há um mês, andasse a desejar “Feliz Páscoa” ou “Come muitas amêndoas”, ou me mandavam internar ou me escondiam um calendário no folar. “Feliz Páscoa” só a partir da Quaresma, e é para quem se lembra. E nessa questão de espírito, a Páscoa sai muito a perder em relação ao Natal. Na Páscoa, ninguém põe coelhos gigantes a subir aos telhados, e coisa que não existe é “A Páscoa dos Hospitais” ou “A Páscoa das Prisões” – o que até é um ponto a favor da Páscoa – não há gorjetas maiores que o habitual, o dinheiro ganho pelos pedintes não sobe em flecha, as crianças não andam pela casa à procura dos ovos, nem as mais novas se escondem nem fazem uma chinfrineira porque o coelho entrou; em vez de dar o “Sozinho em Casa” cem vezes, dá o “Ben Hur” apenas cinquenta, não há emissões de quatro horas para uma árvore gigante com lamparinas em cima.
Falta, portanto, espírito à Páscoa. E como se chamaria um eventual espírito? Espírito Pascoal? Pascoal só me faz lembrar o bacalhau. E o bacalhau come-se quando? No Natal.
É inevitável. O Natal ganha.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Paixão




Debaixo da chuva, dos olhares sem mar,
Abraçada pelas luas dos dias finitos...
Sinto quebrar o já quebrado
Sinto roer o já roído
Quero chamar o nunca chamado
E render o nunca rendido...

Nas horas mortas dos ponteiros vivos,
Nos silêncios cortados das amarras eternas...
Ouço dizer o nunca antes dito
Ouço verdades nunca verdadeiras
Prendo beijos do amante maldito
E estrelas, cometas... galáxias inteiras!

São momentos, são impulsos, são paixões
Como cartas, risos, fotos ou canções...
De luares, mil sóis e dias por haver!
E é tudo sempre o mesmo, tão diferente...
Que sinto, quero, ouço e prendo.. tanta gente!
E no fim só tu me tens, sem eu te ter...



> Mariana Silva

quarta-feira, 12 de março de 2008

A história do 112 que ficou reduzido a décimais


Dizer parvoíces sobre ambulâncias não é novidade para mim. De facto, a minha primeira piada, de toda a minha vida, foi sobre uma ambulância. Estava eu em casa da minha bisavó, chamou-se uma ambulância agora não me lembro porque carga de água, e na altura - vejam lá aos anos que isto foi (sinto-me acabado...) - o número de emergência era o 115. Com a demora da ambulância, saio-me eu com esta: "Fogo (na altura "fogo" estava muito na moda), mais valia termos chamado o 114".
A minha mãe riu-se. O meu pai chorou de orgulho. A minha bisavó pediu-me para repetir. Ao início pensei que era por ter gostado, mas foi porque não ouviu. Seja como for, fui um sucesso. A partir daí, tomei-lhe o gosto e fiquei parvo.
Decidi agora escavar fundo na imundície dos alicerces da minha imbecilidade. O que me fez recordar isso foi a notícia da ambulância que foi albaroada por um comboio numa passagem de nível. É catastrófico pensar que um veículo que salva vidas aos magotes pode ser também o transporte para a última viagem da vida, quando tanto quanto sei os utentes estavam a fazer fisioterapia. É como um barco salva-vidas a transformar-se em poucos segundos num navio-expresso para Aqueronte.
Agora a questão é o porquê da tomada do risco, e isto é sério, é a cidadania dos condutores que nos podem guiar à biforcação entre a vida e a morte. A condutora era uma mulher, portanto não foi por exibicionismo. Não foi pela gravidade dos utentes, que parece que só tinham problemas nos ossos (podia fazer aqui uma piada macabra, mas hoje faço meses de namoro e devo a integridade à minha namorada). Tudo não passou de uma mera fraqueza humana de querer superar barreiras. O homem não gosta de barreiras. Detesta limites. E eu incluo-me. Quando as folhas do meu caderno têm aquelas linhas vermelhas verticais, só me apetece ultrapassá-las, nem que tenha o caderno todo disponível. Eu posso nem sequer me lembrar que tenho chocolates, mas mal a minha mãe me diz para não os comer porque já vamos jantar começo logo a roer-me todo.
No fundo, este acidente não passou de mais uma tentação inacta de pecar por gosto.
E quem culpamos? A falta de sinalização ou a maçã de Eva?

domingo, 2 de março de 2008

Paris

No ar pairava um cheiro a alfazema, a primavera-verão confusa no romance que lhe dourava os cabelos, à luz do sol parisiense. Sentados na mesa da esplanada, a toalhinha vermelhusca, as velhas, uma cena quase de desenho animado, se estivessem eles a partilhar almôndegas e se saísse do restaurante um cozinheiro gordo a tocar acordeão apaixonadamente… Ela gargalhava, ele não tirava os olhos da boca dela, que a menina humedecia em tom provocatório, de vez em quando. Riam os dois, nem sabiam bem de quê… Riam um para o outro, um do outro, embalados naquela Paris que embebedava os sentidos, deixando-se apaixonar sem medo, porque a cidade assim o pedia.
Passou-lhe pela cabeça que ele a levara ali para a pedir em casamento. Tantas histórias tinha já escutado, de namorados loucos que, no topo da torre Eiffel, a tremer de frio, a esconderem-se das alturas, sussurravam o mais romanticamente possível um pedido de união eterna… E claro que as namoradas respondiam afirmativamente, coitado do rapaz, tanto esforço…
Estava aterrada. Se isso lhe acontecesse, que faria? Não, ele não seria capaz… Estavam tão bem assim, tão descontraídos, sem nada que os obrigasse a partilhar seja o que fosse – partilhavam porque assim o que queriam. Diria que não, com certeza ela recusaria se ele lhe fizesse essa proposta… Pediria um tempo para pensar, como se vê nos filmes e nas telenovelas. Mas nestas coisas não se pensa muito: se estivessem prontos para casar, ela diria sim sem hesitar. Não… E daí…talvez tivesse de pensar… Sim, tinham sinceramente de pensar em conjunto para assentar ideias. Era a desculpa perfeita: temos de falar, amor! Onde morar, como pagar as contas, tanta burocracia no meio do amor, Jesus!
Entretanto, ele continuava a olha-la, a sentir a brisa de Paris, a sentir a sua brisa, a sorver-lhe o olhar e a dar-lhe o mundo num sorriso, e ela teve a certeza que não desejava estar noutro lugar senão ali, com ele, sem torres Eiffel, sem filmes ou telenovelas, sem burocracias no meio do amor.

Estavam ali juntos, rindo. Pairava no ar um cheiro de alfazema. E aquele fim-de-semana era para eles o primeiro de muitos, ao som de uma música inaudível para outros, nas alturas para eles … Estavam apaixonados, havia dúvidas?

Ela teve a certeza de que ele não diria nada. Estavam ali, e isso bastava.


>>> Mariana Silva